Auê

Atenção, o texto contém conteúdo sobre violência, sensível e gatilho para muitas pessoas. Lembre-se: em caso de violências — de qualquer tipo — busque ajude profissional.

Maithê Prampero
3 min readJan 2, 2024

O dicionário diz que auê significa “alvoroço, confusão, tumulto”. Concordo, mas gosto mais da palavra quando está na voz da eterna Rita Lee. Desculpe o auê é uma bela música, mas o texto não é sobre ela.

Este texto é uma desculpa para o meu próprio auê, aquele que se passa da pele para dentro, como define Skinner sobre os comportamentos encobertos.

Preciso me desculpar comigo mesma por muitas coisas. Acho que está na hora de falar sobre algumas delas, que sempre estiveram aqui, por meio de ficções sobre o mundo — interno e externo.

Vou voltar um pouco, embora o mundo virtual esteja focado na passagem de 2023 para 2024. Preciso começar a me perdoar lá em 2016. Peço desculpas ao meu eu de sete anos atrás, por pegar caixas de culpa que não me pertenciam. Peço perdão por ter acreditado que a culpa era minha. A violência física nunca é culpa da vítima.

Quero me perdoar, ainda, por ter aceitado pouco, descredibilizando as minhas necessidades. Por não ter me escolhido, me transformando em um camaleão, pronto para me anular e me camuflar em meio ao ambiente.

Me perdoo por ter colocado vendas que me impediram de ver o essencial. Por ter perdido potenciais amizades e por ter feito escolhas baseadas no medo da solidão, na ansiedade e na insegurança.

Peço perdão por ter negligenciado meu corpo, opiniões e jeito único de ser. Por ter deixado em um baú as singularidades que fazem com que eu seja eu.

Peço perdão à pessoa que fui em 2015, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23. Provavelmente ainda precisarei me pedir perdão. O auê que nos constitui está sempre aí, fluindo com a vida. O que sei, hoje, e que é tão pouco, é que não aceito mais caber em caixas pequenas, nem amarrar minhas asas. Não aceito mais gritos, socos na parede, inferiorização, abusos físicos, sexuais, patrimoniais.

Aceito o meu auê, que vem de tomar café todo dia, até perceber que estou acelerada. Comer chocolate todo dia, gostar da noite e trabalhar pela manhã. Do auê que me faz fã de Jão, Taylor Swift, Gal Costa, Rita Lee, Marília Mendonça. Aceito e amo o auê que se passa internamente, e que me faz brincar, fazer piada. O auê que é trabalhar na área hospitalar. Aceito o auê que é a vida e a morte, dançando sempre lado a lado. Aceito o auê que faço com essa coisa de amo a internet — não aguento mais rolar o feed. Aceito os meus recomeços, porque eles vêm das minhas escolhas.

Tenho o hoje para entender o meu auê, para ver qual será o caminho, sem esquecer da gloriosa frase de Alice no País das Maravilhas: “para quem não sabe o que quer, qualquer caminho serve” (tradução livre). Estou construindo meu caminho, virando as chaves num ritmo que não é dos segundos do instagram ou do tico e teco, mas meu. Que possamos viver os nossos auês saudáveis, os que são inofensivos. A violência nunca é um mero auê, é um caos, um tremor, um espaço vazio, sem escolhas.

A vida está aí, com a mesa posta, para que possamos nos servir. Recomeçar é sobre fazer escolhas, sempre, e mais uma vez.

Obrigada por ler este texto. Você pode apoiar meu conteúdo seguindo o perfil e clicando nas palminhas.

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