Belle insegurança

Maithê Prampero
10 min read5 days ago

--

Izabelle. Iza para umas três pessoas, mas Belle para a grande maioria. Colegas de escola, faculdade, trabalho. Izabelle para a mãe e os irmãos. Não gostava de ser chamada pelo próprio nome, pois tinha medo de que as pessoas lhe chamassem em tom de autoridade. Um medo terrível de desagradar.

Começou a namorar aos doze anos, e se tornou a mais popular da oitava série. Eram o modelo brasileiro do típico casal adolescente dos filmes estadunidenses. Com a diferença de que ele não jogava futebol americano, mas era um ótimo aluno do vôlei, praticando em times juvenis nos contra-turnos da escola. Loiro, olhos azuis, um brinco descolado na orelha esquerda.

Belle também sempre correspondeu aos padrões: magérrima, com alguns comportamentos pouco saudáveis de alimentação, cabelos lisos, com mechas na quantidade ideal para ser considerada loira, mas não para ver raízes profundas em um mês e meio, uma espécie de cabelo esfumado, com custo de mil reais por procedimento. A mãe, que sempre quis compensar a falta de tato e senso, pagava sem reclamar, embora houvesse um esforço e dez parcelas envolvidos no processo. De olhos escuros, ela sempre foi a aluna mais maquiada, a mais estilosa, a mais mais da escola de ensino público do bairro antigo da cidade.

Portões azuis na escola, senhora Marta como inspetora de alunos e contrária a namoricos nos corredores. Sempre de olhos atentos para o oitavo bê, que tinha o famoso casal. Sempre que pegava um beijo, selinho que fosse, interrompia e ameaça: advertências, suspensões, contatos com os pais. Os dois, de olhos arregalados e nenhum arrependimento, desculpavam-se piscando muitas vezes, desejando que ela encontrasse esquecimento nos próximos minutos. No outro dia repetiam a dose, levavam uma bronca e então a vida seguia.

Marta cansou um dia e decidiu de fato suspendê-los. Escreveu de próprio punho um bilhete, sinalizando que estavam sendo suspensos por três dias devido a “atividades libidinosas terminantemente proibidas em ambiente escolar e educacional”. Belle chorou, até perder o rímel da lojinha do centro, precisando esfregar papel higiênico de folha simples nos olhos delicados. O namorado disse que sabia imitar perfeitamente a assinatura do pai, de modo que ficou tranquilo. Não se ofereceu para ajudá-la, numa postura que ela conheceria bem ao longo da vida adulta: “cada um por si”.

Entregou o bilhete à mãe e esperou pelo tapa, chinelo, cinto, qualquer coisa, talvez uma colher de pau que estivesse na mão, uma tampa de panela. Não veio a retaliação esperada. Surpreendeu-se. A mãe lhe disse que escolas eram sempre muito rigorosas e quadradas, e que meninas da idade dela só pensavam em namoricos, como deveria ser. Enfatizou que o objetivo deveria ir além do estudo, e que encontrar um par seria a verdadeira vitória.

Formou-se ali um conceito que lhe acompanharia até trinta anos: a crença de que o valor de uma mulher consiste em estar com um homem. Repare que não se trata de escolher, ter critérios ou domínio sobre a própria vida, mas sim de ser o troféu de um homem. Pode ser um homem violento, um babaca, um cara inseguro e ciumento, imaturo, mas ainda é melhor que estar sozinha. Antes mal acompanhada do que solteirona.

Perseverou e manteve ativos os beijos de corredor, evoluindo depois para momentos lado a lado nas arquibancadas da escola de Ensino Médio. Nesta época havia outros casais, que também trocavam carícias nos rápidos vinte minutos de intervalo. Gostava de seu par, mas havia ali uma mágoa, desde o dia em que ele resolveu o próprio problema e nem ao menos tentou ajudá-la. Decidiu passar por cima disso, porque se encrencasse, poderia perder o namorado.

Sabia que era bonita, mas insegura. Sempre se pegava pensando: e se o namorado morresse? E se passasse na faculdade sonhada, em outra cidade?. Desenvolveu gastrite nervosa quando o papo de vestibular surgiu. A ideia remota de estar longe do mundo que conhecia, do namorado que sabia de sua vida há anos, deixava um buraco no peito e uma cumbuca de ácidos no estômago. Não queria prestar prova alguma, satisfeita estaria com ele e ela dividindo a mesma faculdade, na zona sul da cidade. Uma universidade particular, que era totalmente fora da realidade dele, talvez um pouco mais cabível na dela. Havia sempre a possibilidade de trabalhar manhã e tarde e estudar a noite.

Houve um afastamento quando ele entrou no curso técnico e ela não. Ele passou a entrar as sete e sair as dezoito da escola, voltando para casa para comer, tomar banho, responder as listas de exercícios, dormir. Ela ia embora às onze e cinquenta, realizava as tarefas, varria a casa, buscava a irmã mais nova na escola ao fim da tarde e passava o resto do tempo vendo TV. Sentia-se estranha, sem propósito, mas o que poderia fazer? Já tinha namorado e estava terminando a escola, era isso, certo?

Se sabotou na prova de ensino técnico, porque na real não queria entrar, corria o risco de gostar e sentir o formigamento de querer estudar mais, talvez em outra cidade e universidade. Se ficasse quieta, no lugar que já conhecia, não precisaria enfrentar as dificuldades do desconhecido. Percebeu que o namorado estava seguindo a vida, estudando cada vez mais, e falando vez ou outra de cidades com campi de grandes universidades.

Insegura que só, passou a criar caso com tudo. Incomodava-se com qualquer coisa, a ponto de se sentir abandonada por ele ter simulados ou apresentações. De alguma maneira, queria mostrar que aquela vida era boa, e que bastava. Esquecia-se, entretanto, de que é impossível dizer o que é uma vida boa para o outro. Para ele, uma boa vida envolvia mais, e foi o que ele fez. Entrou em três universidades e escolheu aquela com o melhor curso de sua área.

Ela ficou, entrou na universidade da cidade, entrou em um trabalho de meio período. Conseguiu bolsa pelo bom desempenho, só por isso conseguindo pagar pela graduação. Decidiram tentar, mas ambos sabiam que os dias daquela relação estavam contados. Sentiam-se tristes, porque tudo era muito confortável: conheciam as famílias um do outro, acompanharam-se em momentos tristes, velórios, e também nos de celebrações. Ele nunca tinha ficado nos cantos das fotos dela. Precisaria recomeçar uma história inteira do zero, pois sua adolescência foi vivida para e com ele.

O término inevitável veio: ele voltou da faculdade em um fim de semana e chamou Belle para conversar. Foi a única vez que chamou-a pelo nome inteiro. Foram ao Açaí que frequentaram nos últimos cinco anos. Ela sabia o que estava prestes a acontecer, e sabia também que não havia nada que pudesse fazer para postergar aquele momento. Tentaram fazer de forma amigável, e, por um tempo, mantiveram contato por mensagens, até mesmo com chamadas de vídeo. É claro que não funcionou, as coisas se misturaram, e não sabiam mais se eram um casal novamente ou não: o limbo do término, um terrível fundo de poço.

Finalmente o contato foi cortado, quando as famílias se envolveram para preservá-los de mais sofrimento. Iza solicitou aumento da carga horária do trabalho, queria ocupar a cabeça. Descobriu, neste caminho, que gostava daquele ambiente: consultório odontológico. Entendeu que nunca tinha pensado na sua área de atuação, e que talvez apenas estivesse escolhendo qualquer coisa, para ter uma faculdade no currículo. Trancou o curso, disposta a deixar de gastar tanto dinheiro em algo que parecia ser em vão.

Já era agosto, estudou e relembrou algumas matérias, inscreveu-se no vestibular. Não foi aprovada em nenhuma das faculdades mais próximas, apenas em uma muito distante, que tornaria impossível sua permanência. Fez o vestibular da faculdade da cidade, entrou em um curso da saúde, seguiu no consultório como recepcionista. A cada ano cursado, subia um pouco na carreira dentro do consultório. No último ano, era estagiária. Após a colação de grau, já tinha seu nome gravado em uma placa na porta do consultório oito.

Descobriu que gostava de mais uma coisa além do ex-namorado: a profissão. Também desenvolveu uma amizade mais íntima com a irmã, que fez o caminho que ela não trilhou: formou-se e foi embora, nunca mais voltando para ficar. Voltava vez ou outra, para visitas curtas, que tinham duração máxima de 72 horas. Entendia, mas sentia tristeza. Não gostava de mudanças, distâncias e todas essas instâncias.

Formada, interessada em cursos de pós-graduação, já com pacientes elogiando seu trabalho, conheceu uma pessoa. Amigo de um amigo, indicou como se entregasse um cartão de visitas. Tenho uma amiga solteira. Tenho um amigo solteiro. Topou o encontro duplo porque fazia mais de dois anos desde o término, sentiu que estava pronta para conhecer alguém.

Apaixonou-se, ou pelo menos se convenceu de que estava perdidamente apaixonada por ele. Começaram a sair e, com grande esforço, conseguiu deixar rolar com tranquilidade. Depois de dois meses, firmaram um compromisso. Muito insegura, começou a sofrer infinitamente com cenários que só encontravam base firme em seus pensamentos. Buscou terapia e começou a entender alguns processos.

Apesar da terapia, entendeu que havia mais. Culpar somente sua história e inseguranças seria cruel e injusto. Tentou ter conversas difíceis, com objetivo de construir uma relação saudável, mas não foi o que ocorreu. Começou a viver brigas terríveis, ouvir xingamentos e enfrentar situações que considera reais apenas em relacionamentos terríveis. Estava em um relacionamento pouco saudável? Não queria se deixar levar pelo vocabulário das redes, então evitava pensar no conceito de relacionamento tóxico.

O tempo passou e o relacionamento terminou. Desta vez foi o algoz, a responsável por bater o martelo que indicava o fim da relação. Entendeu que a sensação de fracasso estaria novamente presente, como da primeira vez. Falou deste tema em terapia por semanas e semanas, até finalmente entender alguns padrões, coisas que viu em sua casa e modelos que aprendeu. Realmente sentia um peso gigantesco quando não conseguia manter o relacionamento que esperavam dela. O objetivo que havia aprendido como único para uma mulher: estar com um homem. Junto a este objetivo, vinha um outro: ser hétero. Nunca havia sido ensinada a encontrar um amor, mas sim a encontrar um cara.

Viveu de novo o luto, sentindo desânimo até mesmo com a nova paixão, que era a carreira. Reencontrou o primeiro namorado um fim de semana, e esperou o pior, mas conseguiram se cumprimentar amigavelmente. Ele estava acompanhado, e ela deprimida. Pouco depois soube que ele estava para se formar e pretendia sair do país, para fazer pós-graduação na Europa. A namorada também tinha os mesmos objetivos, até pensavam em trilhar o caminho acadêmico juntos.

Sentiu que, a cada nova derrota, demorava mais tempo para sair do auge da tristeza. Como se o corpo cansasse e a cabeça também, sendo mais e mais pesado levantar das quedas. Teve um terceiro relacionamento, tão passageiro que nem sabia se deveria considerar um namoro. Entendeu, entretanto, que o sentimento havia sido de relacionamento, e que, por isso, doeria novamente. Mais um luto, mais um período de ver tudo se tornar fuligem em seu coração.

Seguiu em terapia, tentou afastar-se um pouco do ambiente familiar. Expandiu horizontes, experimentou até mesmo uma viagem só de mulheres, com um grupo cheio de pessoas inspiradoras. Voltou com sentimento de transformação, mas bastou estar há uma semana na rotina, para acomodar-se novamente nesta poltrona que já tinha a marca do seu corpo triste.

Culpava-se pelos términos todos. Se não fosse ansiosa, se não tivesse falado sobre o assunto temido pelo outro, se fosse segura de si, se deixasse ele de lado, se fizesse joguinhos, se fosse direta. Inventava hipóteses absurdas, mas que caíam como o peso da realidade sobre suas costas. Se ela não fosse ela, talvez estivesse com alguém. Feliz, realizada, em um relacionamento. O único status que mantinha ativo era “tentando agradar a todos”.

Decidiu fechar seu coração. Por um tempo, viu que era necessário mesmo, precisava descobrir quem era fora de um relacionamento, porque estaria para sempre vivendo a própria vida. Viajou mais, passou tempo de qualidade sozinha. Decidiu conhecer a sua cidade e outras ao redor, a começar por ações pequenas e cotidianas: uma ida ao cinema, sem mãos para segurar, frequentar o açaí que era tradicional com o primeiro namorado, o parque da cidade, o observatório. Passou a fazer planos consigo mesma, em uma agenda que sempre estivera em branco.

Descobriu que gostava de seus pensamentos, e que se julgava uma boa companhia. Perdoou-se por tantos desencontros, que começavam no seu núcleo e iam para fora, para as relações com todos ao redor. Entendeu seus processos, e o quanto era um galho da grande árvore que era sua família.

Pouco tempo depois, recebeu um convite do encontro de dez anos da formatura de Ensino Médio. Todos se encontrariam em uma chácara, para um fim de semana de nostalgia, cerveja e baralho. Confirmou presença a contragosto, porque sabia que muitos estavam casados, com filhos, e que poderia reencontrar o ex-namorado, o primeiro. Talvez quisesse revê-lo, e por isso estava aceitando o convite.

Tentou desviar dos assuntos espinhosos e das perguntas que tinham um único propósito: matar a curiosidade de pessoas que não via há dez anos. Conseguiu driblar as situações, utilizando-se de diversas desculpas. Uma hora precisava ir ao banheiro, noutra estava indo tirar fotos, e, numa terceira, precisava pegar um drink. Em um momento que tirou para respirar, dentro do banheiro, olhou para o espelho e entendeu que não deveria estar ali. Estava perdida em pensamentos quando foi interrompida por uma outra mulher. Olhou para ela, e soube imediatamente que era a nova companheira do seu primeiro namorado. Quis sentir raiva, rivalidade, mas não cabia algo assim em seu coração.

A moça lhe perguntou se estava bem, então se ofereceu para ajudá-la: precisava vomitar? estava passando mal? Se apresentou e viu os olhos da mulher ficarem arregalados. Sorriram, e ali entenderam muito, talvez tudo. Sentaram-se no chão sujo do banheiro, começaram a conversar sobre a vida. Entendeu que seria impossível não amar a mulher que estava à sua frente, mal sabendo que os olhos que lhe seguiam também pensavam o mesmo.

Falaram sobre o cara que conheciam bem, e riram pensando que aquele era um encontro muito inesperado. Acharam coisas em comum. Pensaram sobre sonhos, desejos, sobre coisas que não tinham a ver com ele, mas sim com elas duas. Descobriram um mundo que era compartilhado por elas e mais ninguém. Ali nasceria uma amizade gigantesca, profunda, que duraria até o fim da vida. Trocariam dores, alegrias, shows, viagens.

Izabelle aprenderia com a nova amiga que a vida é feita para ser gigante, e que há muito além de um relacionamento amoroso, de encontrar um par. Belle encontraria muitos pares, mas descobriria que o amor não vem uma única embalagem.

Também sairia do país, faria pós-graduação, se tornaria uma grande blogueira de viagens. Não teria filhos, nunca os quisera, mas seria madrinha da filha da melhor amiga e do primeiro namorado que tivera. Descobriria com eles um formato de família único: a que se escolhe.

Iza encontraria o amor romântico, aos quarenta e cinco, alguém totalmente diferente do que aprendera a procurar. Viveria uma história intensa, verdadeira, e que duraria até o fim da vida. Ela iria primeiro, e ele, amaria a sua pessoa até sentir o último suspiro.

Seria uma boa vida. Ela entenderia isso, antes de ser tarde demais. Descobriria mais motivos para sorrir. Muitos motivos.

--

--