Gab medo

Maithê Prampero
7 min readSep 9, 2024

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Até mais ou menos dois mil e treze, ela era a Gabi, Gabs para algumas pessoas, mais íntimas. Depois que entrou na faculdade, passou a ser a Gab. Imaginou muitas vezes como seria uma vida em que não existisse como ela mesma, mas sim como outra, Maria Fernanda quem sabe. Ou Beá, ou ainda Lília. Gostava desse nome.

Se imaginou Mari, Carol, Dani, Tati, Camila. Menos Gabriela. Gab. Sempre se achou a mais sem graça, a mais sonsa. O nariz mais adunco, os dentes mais esquisitos. A mais inteligente nunca pode se achar, embora sempre tenha gostado de estudar. Irmã do meio, sempre ouviu que era esquecida, a menos importante, pois caçulas são mimados e mais velhos queridinhos. Filhos do meio: nada. Assim passou a se identificar, como nada.

Quando percebeu que a vida poderia ser longa, entendeu tudo: teria medo. A primeira vez que sentiu medo foi aos sete anos, quando se deparou com um bicho esquisito no banheiro. Não gostou, passou a evitar o banho, as vezes até abrindo o chuveiro e sentando do lado de fora do box de acrílico.

A mãe logo descobriu e disse que ela dava trabalho, que tentava chamar a atenção. Passou a vigiá-la em todos os banhos, conferindo entre os dedos e perguntando parte por parte se ela tinha limpado: braços, cotovelos, pescoço, joelhos, pés. Primeiro o xampú, depois o condicionador, nunca em outra ordem. Por que? Nunca entendeu, porque as respostas eram sempre: pergunte menos, dê menos trabalho.

Passou a sentir medo das perguntas, justamente por não ter respostas. Tornou-se quieta, mas igualmente não recebeu elogios. Tornou-se a mais dedicada de sua sala, fechando os boletins dos quatro bimestres com dez, dez, dez, nove, dez, dez. Nem assim. Tentou o caminho exemplar: tomava banho antes de pedirem, terminava as tarefas da escola antes da conferência dos cadernos, arrumava a cama ao acordar. Nada.

Descobriu um novo medo: ser sozinha. Não estar sozinha, como quando todos saíam de casa, mas ser sozinha. Não ter com quem conversar sobre as maluquices da mente, sobre os medos todos, sobre sonhos. Medo de ser julgada, recriminada, retaliada. Medo de só sentir medo e ser nada. A filha que poderia morrer, pois ninguém sentiria falta.

Entendeu que não encontraria dentro de casa o afeto esperado. Passou a procurá-lo fora, dedicando-se aos amigos. Fez alguns bons vínculos, perdeu uns tantos pelos caminhos das trocas de escola, manteve alguns até a vida adulta. Viu amigos crescerem, conheceu outros tipos de pais, irmãos, famílias. Achou respostas, e quando não as encontrava, inventava algo com ou sem sentido.

Desejou ser irmã de seus amigos, ter como mães as tias Vilma, Patrícia e Carla. Pais nunca gostou, sempre ausentes. Ou, pior, presentes. Quis ter como irmãos Luísa, Marina, Vinicius e Rafa. Não sendo possível tê-los nas fotos em porta-retratos sobre o rack e a estante familiar, fez de tudo para tê-los em sua vida diária.

Passou a usar o dinheiro do estágio aprendiz para promover encontros com amigos. Bancou pizzas, as primeiras garrafas de vodca, os primeiros motéis, as baladas e lanches da madrugada, após muita bebida e cigarro. Encontrou escapes que faziam ela esquecer que se sentia um nada: anestesiou-se em uma vida de fim de semana.

Vivia de segunda a quinta esperando a sexta. Intensamente se divertia até o domingo, dezoito horas, quando deveria estar em casa, de banho tomado e com a mochila da escola pronta. Depois passou a ser a bolsa da faculdade. Passou em cinco faculdades, mas escolheu a única da cidade, não poderia arriscar ficar longe dos amigos-família, pois seria muito perdê-los. Impossível até de imaginar.

Na faculdade foi cursar Moda, sem apoio algum da família (não esperava suporte, mas imaginava diariamente como seria recebê-lo). Durante o dia trabalhava em uma livraria, a noite ia para a aula. Tinha vontade de compartilhar com alguém sobre a História da Moda, seus desenhos técnicos e o caderno organizado por matérias. Tentou com a mãe, porque tinha esperança. Foi ignorada delicadamente, quando a mãe disse que estava corrida, mas que em outro momento veria. Nunca viu.

Desenvolveu um novo medo: nunca falar suas verdades, morrer de sufocamento. Ao mesmo tempo, tinha também medo de falar demais, de se arrepender. Palavras soltas machucam, e não é possível engoli-las de volta. Aprendeu a palavra assertividade, achou balela. Entrou na natação, para evitar afogamentos, outro de seus medos. Nadava costas respirando respirando, garantindo que engolisse água e palavras venenosas.

Teve um namorado, a quem amou de corpo e alma. Depois de um ano, ele decidiu terminar, sentia-se pressionado demais, ele era livre, ela carente. Incompatíveis. Ela implorou, ele disse não, depois passou a ameaçá-la. Quando ela conseguiu seguir em frente, duzentos miligramas depois, ele disse que tinha se arrependido. Estava tentada a aceitá-lo de volta, porque entendia que migalhas eram melhor que nada, mas os amigos disseram não, então ela disse o mesmo. Era o seu coração que doía, mas não podia ir contra aqueles que realmente lhe amavam.

Novo medo surgiu: perder pessoas vivas. Nunca tinha pensado em perder pessoas para a vida, só para a morte. Assustou-se ao perceber que os ciclos dos outros poderiam se fechar, com ela da porta para fora. Começou a roer unhas, até dos pés, mas só sozinha, depois do banho, dentro do banheiro.

Ela tinha tanto medo, de tudo, que era difícil sobreviver. Os duzentos miligramas se tornaram trezentos + cento e vinte e cinco. O salário era para a faculdade e para remédios, até que os boletos de estudar e se tratar se tornaram muito. Parou os remédios, precisaria dar seu jeito, faltava só um ano para formar.

Tinha medo de formar e deixar de ser estudante, não sabia ser outra coisa. Era nada. Tinha medo de não se formar e ser estudante para sempre. Tinha medo dos extremos, e do meio termo. Medo de começar, de terminar, de enfrentar. Tinha medo dos durantes.

Morria de medo de morrer. E agora tinha medo das pessoas morrerem e seguirem vivas. Longe dela. Era carente, ele sempre teve razão. Era nada. Suava, o tempo todo. Os seminários eram poucos, mas muito sofridos. Odiava os olhares dos colegas de classe. Não fez amigos. Era vista como estranha.

Decidiu vestir a carapuça e entregou-se aos seus desejos. Usava as roupas que amava, mesmo que não combinassem. Cortou o cabelo, mudou a aparência. A mãe perguntou se estava usando drogas ou se os alunos da moda eram todos assim. Disse que sim, mas não indicou qual pergunta estava respondendo.

Formou-se. Continuou na livraria, mas agora morava perto do trabalho, longe da família. Adotou um gato, um cachorro e pensou em ter uma cobra. Tinha medo de cobra, então melhor não. Descobriu que amava feijão, mas tinha medo de panela de pressão. Medo de entrarem na casa, de esquecer o fogão ligado, de explodir sem querer o apartamento dos outros, de derrubar uma vela e incendiar tudo, de perder o gato, de ele roer a tela e se suicidar. Tinha medo de cortar a tela, em um momento bem acordada, e pular.

Pensou em voltar para a casa dos pais, mas sabia que nunca se perdoaria, e tinha muito medo do remorso. Dos julgamentos e de todos lhe chamando de fraca. Ser chamada de nada seria a confirmação daquilo que já pensava de si mesma desde os sete anos.

Agora tinha quase trinta, mas ainda se sentia suja, sentada do lado de fora do chuveiro, enquanto olhava para dentro e para fora, para garantir que não havia bichos.

Começou a fumar, só para espantar seus medos. Passou a ter medo de seu hálito, da tosse, e de um futuro câncer de pulmão metastático. Deixou o cigarro, recomeçou a roer as unhas. Deixou-as pouco tempo depois, passou a comer. Depois a não comer. Fazia greves de si mesma, da vida, dos prazeres.

Conseguiu um trabalho na sua área, mas que exigia mudança para uma cidade maior, mais agitada. Teve medo do novo, de sair da já conhecida cidade horrível, do trabalho com chefe autoritário e salário ridículo. Infeliz, foi. Nunca havia sido feliz.

Adorou a nova cidade. Pela primeira vez entendeu que era algo além de nada. Era alguma coisa, que ainda não sabia, mas era. Entendeu seu tamanho de grão de areia, e precisou dos prédios gigantes da cidade metropolitana. Ligou para a mãe uma, duas, dez vezes, mas ela fingia ser ocupada demais. Quando deixou de ligar, ouviu que era uma ingrata. Desligou na cara dela, pela primeira vez dizendo algo, mesmo que sem uma palavra.

Foi viver a cidade grande, conheceu pessoas. Recebia os amigos sempre, mas começou a achar que já não eram tão próximos, e que usavam sua casa para fugir de suas vidas medíocres. Se afastou, aceitando melhor o luto. Começou a frequentar baladas, com músicas que lhe faziam esquecer de tudo. Numa dessas, conheceu um cara, se entregou novamente de corpo e alma. Logo voltou a se sentir nada.

Ficou de novo sem namorado, mas com um filho não planejado. Teve medo de ser mãe, mas também de perder o filho. Teve medo de ele também lhe achar um nada. Cuidou de si, da gravidez, e depois do filho, nascido de um parto normal, sob o signo de gêmeos. Descobriu um amor que nunca tinha encontrado, e teve medo de perdê-lo. Teve medo a cada dia, por todos os anos que viveu.

Medo de perder a criança amada, que depois se tornou um adulto, e nunca lhe abandonou. Viu que era o tudo de alguém, e deixou que ele também conhecesse o mundo. Sempre lhe dizia: coragem. Seja forte. Vá em frente. Tentou ser a melhor mãe de todas, e teve medo de não conseguir.

Sentiu medo de dar tudo ao filho, mas também de negligenciá-lo. Não sabia como ser presente sem sufocar. Não queria ser carente, nem medrosa. Queria só conseguir sentir alguma coisa além do medo. Tudo que sentia era hífen medo. Amor-medo. Alegria-medo. Transcendência-medo. Medo-medo.

O filho cresceu, construiu a própria vida, mas não deixou que ela fosse esquecida. Dizia que desejava que ela se visse com seus olhos, pois se enxergava com olhos ocos, vazios. Dois buracos que não viam coisa alguma. Viam nada.

Envelheceu, sem unhas dos pés, sem câncer metastático de pulmão. As articulações curvaram-se à idade, o cabelo rareou. Guardou em seu escritório as pastas com os desenhos técnicos, que mostrara tantas vezes ao filho. Organizou-se para deixar o mundo, pois em seu funeral queria nada. O filho, confuso, disse entender, aceitou.

Teve medo da morte, dos sessenta em diante. Teve medo também de virar semente, de suas unhas crescerem no caixão. Teve medo de ser exumada, mesmo que não fosse sentir. Nada.

Entendeu que havia sido uma vida de medo, mas de outras coisas também. Até achou que tinha sido uma vidinha boa. Quando respirou fundo, pela penúltima vez, deixou de sentir medo. Logo depois, inspirou, sentiu medo, e se foi.

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