Morte em vida II

A série de textos abordará temáticas sobre morte e depressão. Se você possui algum transtorno mental, ou conhece alguém nesta condição, não hesite em procurar e indicar ajuda. Existem profissionais qualificados para lidar com o tema. Pedir ajuda não é fraqueza.

Maithê Prampero
5 min read4 days ago

Ela voltou semana após semana, em algumas delas com anotações em um caderno, no qual também anotava reflexões após os atendimentos. Me parecia sempre ávida para lidar com o seu eu e com a vida. Me lembrava uma criança, logo após comprar material escolar, doida para usar suas canetas, as folhas, os lápis. Abraçava-se ao caderno como se dependesse daquelas exatas palavras e datas para conseguir seguir.

Ansiava por desaguar dez anos em cinquenta minutos, correndo contra o tempo. Era necessário pausá-la, orientar que respirasse, e lhe dizer simplesmente que daria tempo. E que teríamos outra semana. Tentar colocar a vida inteira em um pote de vidro é esforço ingrata e ineficaz. Não cabe. A vida cabe em seu próprio tamanho.

Sugeri algumas técnicas, tarefas que ela realizava com total dedicação. Me contou, lá para o terceiro mês, que não queria que sua família soubesse da terapia. Parte dela sentia como se fosse uma adolescente disruptiva, e outra parte sentia um medo profundo de ser julgada. Ser vista como fraca, como a única que não havia conseguido, mesmo sabendo que eles também tinham suas ferramentas: comprimidos em excesso, álcool demais, cigarro e café, pornografia. Ferramentas duvidosas, mas eles pareciam ignorar a crítica que poderia vir.

Ao fim de sua própria fala, ela percebeu que, talvez, não faria diferença na visão que já tinham dela, e que saber da terapia não mudaria a dinâmica familiar. Ela começou a entender que gostaria de dar à sua família nuclear um lugar menor de poder, e talvez um pouco mais de espaço na luz para si mesma.

Já havia desistido de tentar ajudar, porque dispensou anos de sua vida para tentar convencer a mãe, o pai e o irmão de que deveriam buscar ajuda. Eles zombavam de quaisquer aspectos emocionais, chegando a xingá-la e pedindo que se calasse.

De todos, aproximou-se mais da cunhada, uma pessoa de fora, com uma visão que não havia sido formada naquele núcleo podre. Sentia-se como a parte podre de um ovo que aparenta estar em bom estado. Daniela, a cunhada, era uma pessoa gentil. Por vezes se questionava como ela conseguia se manter casada com o seu irmão, um brutamontes, a cópia perfeita do autoritarismo do pai e do narcisismo da mãe. Daniela ria e dizia conhecer outras faces do irmão, lados em que a sensibilidade era dominante, ou a bondade, ou até mesmo o amor. Acrescentava que via o sofrimento dele, e que gostaria muito de formar uma família só deles, para que pudessem selar o fim da família nuclear o cortar o laço de inauguração da nova família. Ela colocava as esperanças todas em um filho, pois achava que seria o princípio, o renascimento, e que teria um papel importante para todos.

Fazia Camile pensar com sua visão diferente, de enxergar família como união. Daniela vinha de uma família perfeita, ou quase isso, pois sempre teve familiares carinhosos, respeitosos, e histórias de almoços, cafés da tarde e jantares para contar. Tinha primos de idades próximas que eram como irmãos, e irmãos que eram como almas gêmeas. A família dela recebera Caio de braços abertos, como se fosse um novo filho que estava chegando.

Camile sentia inveja. Queria ter uma família bacana, pelo menos uma menos problemática. Não tinha vontade de ser mãe, porque o medo de repetir os erros da sua própria lhe atormentavam, e porque tinha um pavor absurdo de perder sua filha, como havia perdido a pequena irmã. Não pensava sobre casamento, pois julgava que já estava tarde. Se estava solteira aos vinte e cinco, imaginava um longo caminho até conhecer alguém, namorar, noivar. Tinha uma visão muito quadrada de como tudo deveria ser.

Na faculdade fez alguns amigos, poucos, mas que sempre foram íntimos demais. Tinha dificuldade de se aproximar, criar vínculos, se entregar. O mesmo valia para o amor romântico, a intimidade lhe assustava mais do que lhe atraía, de modo que preferiu sempre a fantasia. Filmes, livros, até mesmo a religião se tornou uma fuga.

Os comportamentos dela de fuga me incomodam toda semana. Aspectos que levo para minha psicoterapia e para a supervisão. Talvez por ter amado — e ainda amar — uma pessoa muito instável e esquiva, ou talvez por perceber na paciente algo tão meu, esse desejo de escapar de fininho dos problemas da vida, rodeando-os, colorindo-os, evitando-os.

Ela não se cansa de elogiar o processo terapêutico, e de salientar os avanços. Expressa ansiedade por estar na terapia, mas chega a sentir falta de ar só de imaginar uma semana sem atendimento. Na última semana, precisei fazer uma pequena viagem para resolver algumas questões familiares, de modo que desmarquei os atendimentos, recebi dela inúmeras mensagens. Precisei utilizar os princípios da extinção, ignorando as mensagens. Anotei no caderno de sessões que isso seria primeira pauta a ser abordada.

Na semana seguinte ela faltou. Não enviou justificativa. Entendi que estava testando o terreno, saber o quanto poderia se afastar e sumir sem que eu lhe mandasse embora. É curioso como a terapia transforma todos em crianças que desejam amparo, ou melhor, apenas coloca luz a esse comportamento, que já é comum a todos nós. Ela precisava entender que a terapia seria um espaço seguro.

Enviei uma mensagem dizendo a ela que estava de volta, e que ficara lhe aguardando. Ela respondeu imediatamente, como se já estivesse na janela de nossa conversa. Confirmou o atendimento da semana e, de fato, não faltou.

Abordamos as dores envolvidas em rupturas que sofreu ao longo da vida, os medos envolvidos nas perdas. Ela discorreu sobre alguns relacionamentos fracassados, e sobre a dor física que havia sentido. A mesma dor no peito e nas articulações que sentiu no velório de sua irmã e nos dias subsequentes.

Terminou a sessão me perguntando:

— É possível morrer de tristeza?

Ali eu entendi uma parte. Não o todo, pois nenhuma terapia entende o todo de um ser, nem mesmo o próprio sujeito. Entendi talvez o maior de seus medos, tão gigante e monstruoso, que precisou ser falado da porta, para que ela pudesse dizer e correr.

Sim. É possível morrer de tristeza.

Segundo texto da série Morte em vida, que abordará temas concernetes à existência, depressão, luto e dores associadas.

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