Morte em vida III

A série de textos abordará temáticas sobre morte e depressão. Se você possui algum transtorno mental, ou conhece alguém nesta condição, não hesite em procurar e indicar ajuda. Existem profissionais qualificados para lidar com o tema. Pedir ajuda não é fraqueza.

Maithê Prampero
6 min read2 days ago

— Quando a minha irmã morreu, algumas pessoas sugeriram que minha mãe nos colocasse em terapia — eu e meu irmão. Ela achou absurdo, rompeu relações de muito tempo. Dizia que os filhos não eram loucos.

Camile seguiu, dizendo que a mãe tinha opiniões fortes e inabaláveis. Uma qualidade e um super defeito. Não foram para a terapia, mas sim para o teatro. Segundo a mãe, o mais saudável seria aprender a expressar sentimentos e mimetizá-los, algo muito mais útil do que desaguar em terapia. Era preciso segurar a vida e o choro, sustentando na falsidade.

Diversas outras frases daquela sessão, e de tantas outras, começavam como “quando a minha irmã morreu” e variações: quando ela se foi, quando Celine partiu, quando perdemos a caçula. A história inteira da vida dela havia se construído ao redor de uma perda, que acarretara tantas outras.

Além da irmã, com a qual conviveu por alguns anos, perdeu a mãe, que era sua grande referência. Uma mãe que morreu em vida, que deixou o brilho. Deixou de sustentar na falsidade, pois nem personagens conseguiam dar conta do tamanho de sua dor e de seus monstros.

A terapia seguiu, ora a passos lentos, ora a passos acelerados, sem frenagem possível. Ela oscilava, como se estivesse em uma montanha russa, subindo lentamente e caindo em pânico. Pude ver aquela mulher voltar a ser uma garota, para então desabrochar novamente como a pessoa que poderia ser.

Lentamente, ela foi conseguindo elaborar. Escreveu cartas para a irmã, para a mãe. Entendeu a importância de fechar esse ciclo, que completava uma década. O tempo do relógio, me disse certa vez, não dá conta do luto. Os dias, horas, semanas, anos, não significam coisa alguma. O luto é processo de costura manual. Singular. Cada um faz os seus pontos.

Decidiu que precisava fazer algo muito simbólico: visitar o túmulo da irmã. Sozinha, pela primeira vez. Ensaiamos, por meio de uma encenação. Fizemos um contrato de proteção e prevenção de crises. Lhe expliquei que poderia ir embora, e que não havia meta ou tarefa a ser cumprida. Apesar disso, vi olhos determinados.

— Ontem fui ao Cemitério da Saudade. Esquisita essa palavra: saudade. O que significa? Penso que pode ser um aperto no peito, desses que a gente não sabe descrever se é infarto, ansiedade ou algum outro tipo de adoecimento agudo. Palavra sem tradução para outros idiomas. Em um cemitério cabe mais dor do que saudade. A saudade vem muito mais quando eu sinto o perfume que ela usava, ou quando vejo irmãs em vídeos, interagindo em restaurantes. Vem quando vejo qualquer filme de animação, e quando como pipoca. Sinto saudade da Celine quando lembro do videogame, e das brigas pelo controle. No cemitério senti dor.

Deixo que ela guie o ritmo da sessão, e que expresse tudo aquilo. Ela começa então a narrar sobre esta visita, que descreve como um ritual, pois acredita que a irmã não está mais lá, nem mesmo em carne. Sonha frequentemente que estão exumando a irmã, e que apenas encontram o crânio, com um sorriso meio macabro e meio inocente, como são as crianças.

— Fui pela manhã, por algum motivo o horário mais vazio. Talvez as tardes sejam para aqueles que saem de um dia difícil no trabalho, ou que esperam o sol começar a dizer adeus. Ou ainda para os que criam coragem ao longo do dia. Eu queria estar lá sozinha, mas me senti acompanhada desde o trajeto até entrar e procurar por ela entre os corredores. O13. O corredor da minha irmã, que não chegou a completar seus treze anos, nem mesmo os dez.

Ao longo da minha carreira, tive vontade de chorar poucas vezes em sessão. Chorei ao realizar orações de despedida em hospitais, beira-leito, mas nunca na clínica. Neste dia precisei reunir esforços para conseguir sustentá-la. Aquele era o ritual da paciente, e eu jamais me perdoaria por roubar-lhe um segundo sequer.

— Cheguei por volta das nove e meia. Meu café da manhã foi cereal com leite, algo que a Celine adorava. Levou flores. Girassóis, flores que acho muito parecidas com a infância. Elas têm um quê de conhecer o mundo, e de alegria, características pueris. Quero descrever exatamente como foi minha chegada: encontrei sem dificuldades o corredor, como se os pés e o cérebro já soubessem a localização exata. O túmulo dela estava sujo, mas por sorte eu havia levado sabão e panos, sabia que ninguém lhe visitara nos últimos dois anos, pelo menos. Disse bom dia, e informei que faria a limpeza, antes de começarmos nosso café da manhã.

“Esfreguei delicamente o pano para tirar a camada mais grossa de poeira, em seguida utilizei o detergente. Deixei brilhando, Celine não ligaria, mas sorriria em agradecimento. Minha mãe ficaria orgulhosa. Terminei e então estendi uma canga de olhos gregos na grama, sentando-me em posição de lótus. Expliquei minha roupa para ela e coloquei as flores no local destinado.”

Piscar rápido afasta as lágrimas. Camile estava costurando tantas partes suas. Gostaria que ela enxergasse a grandiosidade deste ato. Se não fosse uma análise dela, definitivamente seria a minha.

— Oi Celine, batatinha. Sou eu, Camile beterraba. Lembra que a gente tinha essa brincadeira de usar nomes de legumes como apelido? Queria ter tido a chance de chamar-lhe abobrinha, cenourita, ou ainda ceboline, misturando seu nome a tantos e infinitos. Queria ter brigado mais com você pelo controle do videogame, e queria que a gente entrasse no cinema juntas, para ver um filme de terror qualquer, só para driblar a regra de idade. Queria ter te contado do meu primeiro beijo, e das meninas falsas da escola. Queria ter feito parcerias com você, contra nosso irmão certinho. Queria ter visto se você se tornaria de fato estilista, ou se mudaria totalmente de caminho, cursando engenharia de alimentos. Queria te contar que você faz falta. Todo dia, há dez anos.

“Queria te contar que hoje eu moro sozinha, algo que você achava muito chique. E que eu tenho um gato, listrado. O nome dele é Garfield, como o gato famoso dos filmes. Queria te falar que a minha casa tem um quarto sobrando, e que eu te aceitaria como moradora, porque melhor do que morar sozinha e ser uma super adulta, eu amaria dividir o espaço com você. Celine, como eu queria outra vida. Uma pena que a gente não consiga saber do futuro em uma bola de cristal, mas, se houver outra vida, eu espero voltar com você. Eu juro que isso não for acontecer, nem vou querer estar novamente aqui.”

Camile continuou, disse que abriu fotos do Garfield no celular, mostrando para a irmã. Contou do trabalho, dos colegas de trabalho, fofocas e picuinhas. Falou do irmão, favorito do pai. Não falou sobre a mãe, pois achou que Celine poderia ficar muitíssimo triste. Despediu-se quando o tempo começou a virar, formando nuvens cinzas que eram prenúncio de chuva.

Quando ergueu os olhos para mim, notei que ela estava sorrindo. Um sorriso meio curado e muito honesto. Ela entendeu o objetivo todo, e não disse mais nada. Eu também não rompi o silêncio, finalizamos aquela sessão desta forma.

Como uma espécie de minuto de silêncio, por Celine, mas também e muito mais por ela. Para que conseguisse colar todos os pedaços soltos ao longo de uma década. Quando ela fechou a porta, me permiti sentir e deixar fluir. Chorei por muitos motivos: dor do luto, pensar na morte, saudade, orgulho da paciente, que estava em processo de restauração, alegria por ver que estava exatamente onde gostaria.

Camile chegou em casa naquele dia, chorou muito, fumou um cigarro de cravo, dançou de camiseta e calcinha no meio da sala, ouviu MPB, tomou um banho à luz de velas, pegou Garfield no colo e dançou com o gato. Tirou uma foto e postou em sua rede com a legenda: é sempre possível recomeçar. Mais um passo, um novo andar.

A terapeuta saiu do trabalho, foi até a casa dele, esperou que chegasse, então avisou que estava subindo. Deu boa noite ao seu Antônio, da portaria, que já a conhecia de muito tempo, e então apertou o nove no elevador.

— Oi. Já passou da hora de resolvermos essa situação.

Ele apenas assentiu, deixou que ela entrasse, soltou a gravata e preparou um drink. Ela aceitou água, jogou fora o chiclete e se propôs a começar. Riram, choraram, e decidiram que estava na hora de um recomeço, cada um para um lado. Assinariam os papéis assim que tudo fosse formalizado, um processo consensual, que tinha tudo para dar certo.

A terapeuta saiu e entrou no carro assentindo com a cabeça. A vida tem tudo para dar certo, mas a gente costuma complicar um pouco. Sorriu pensando em todas as histórias que conhecia, e na única que poderia viver de fato: a sua.

Tudo para dar certo.

Terceiro texto da série Morte em vida, que abordará temas concernetes à existência, depressão, luto e dores associadas.

--

--