Morte em vida IV

A série de textos abordará temáticas sobre morte e depressão. Se você possui algum transtorno mental, ou conhece alguém nesta condição, não hesite em procurar e indicar ajuda. Existem profissionais qualificados para lidar com o tema. Pedir ajuda não é fraqueza.

Maithê Prampero
10 min read3 hours ago

Camile voltou muitas e muitas vezes. Passou por recomeços, recaídas e restaurações. Os três R’s da sua terapia. Reciclou pensamentos, renovou a fé na vida. Resignou-se com as limitações dos outros, compreendendo que nenhum processo terapêutico teria como objetivo mudar a visão de sua mãe, pai ou irmão. Já chegou depois de entender que nada traria sua irmã de volta, então, determinada a viver com esta falta, entregou-se ao processo que nos coloca frente a frente com tantas e outras faltas. Eternamente.

Ela passou a descobrir lados seus que estavam guardados, e também desenvolveu novos hábitos, características, com mais autonomia e liberdade. A cada sessão, meu coração se alegrava mais e mais, por ver um desenvolvimento tão real e belo.

Conseguiu expressar suas dores para a mãe, sem saber o que esperar, prevendo o pior, torcendo pelo melhor. Sabia que não seria um encerramento tão significativo e simbólico quanto o ritual de ir ao cemitério conversar com sua irmã, mas não esperava tanta dor. Não conseguiram encontrar um meio termo, a conversa tomou um teor de discussão grave. A mãe lhe disse que ela estava cheia de ideias e opiniões por causa da terapia, como se fosse uma espécie de “má influência”. Ali reconheci muitos casos, talvez todos. Costumo dizer que o resultado da terapia é se tornar uma pessoa chata, ou ocasionar rupturas e desconfortos naqueles ao redor.

Não sabe, mas a mãe passou dias sem dormir após a conversa, chorava o dia todo. Fingia para o marido que tudo andava bem, mas passava seus dias pesquisando receitas mortais. E se misturasse álcool e comprimidos? Sentia-se, entretanto, proibida a morrer. Seria um desrespeito à filha, que havia morrido opr uma mistura infeliz e acidental. Teria que viver o tempo todo de sua vida. Oitenta, setenta? Noventa. Torcia sempre para que fosse o menor tempo possível e acalmava-se por pensar que “a parte boa da vida é que ela acaba”.

Sentia muitas incertezas, não sabia se devia perdão aos filhos, e se eles também deveria desculpar-se. Nunca soube. Queria encontrar respostas claras a suas perguntas, culpados. Apontar dedos era o melhor caminho, em sua opinião, pois deixava subjetividades de lado. Foi e pronto.

No fundo, sentia-se culpada pela morte da filha. Se tivesse feito o armário alto para produtos de limpeza. Se não tivesse saído naquele dia. Se não tivesse traído o marido. Se tivesse parado no segundo filho. Para que três? Quis repetir essa parte da história da mãe, mas acabou repetindo também o padrão de erros, o alcoolismo. Repetiu a parte que queria e a que desejava evitar.

Havia sido uma mulher infeliz, pelo menos até aquela altura da vida. Será que ainda havia alguma chance de mudança? Honestamente, não sabia nem como começar a responder. Enviou uma mensagem à filha, que tinha o contato salvo em seu celular apenas como Camile, sem nenhuma adjetivação carinhosa: “podemos almoçar juntas amanhã? Uma espécie de brunch, naquela cafeteria da Avenida Nossa Senhora?”.

Ficou olhando o celular como uma adolescente esperando o flerte responder, de minuto em minuto, atenta a qualquer sinal do aparelho. Recebeu resposta da filha no fim da tarde. Durante o dia, Camile pensou, enviou um print da tela para mim, queria uma resposta terapêutica. Respondi que ela pesasse o que se sentia pronta para fazer e que tomasse uma decisão baseada nisso, em sua sustentação emocional.

Às dezoito respondeu com um “ok.”. O ponto final foi apenas para evitar que o assunto continuasse. Não sabiam conversar pessoalmente, menos ainda por mensagem. Queria evitar constrangimentos, de qualquer teor. Não dormiu até duas da manhã, quando foi vencida pelo cansaço. A mensagem chegara após duas semanas da conversa em que tentou lavar toda a roupa suja, botar para secar e espirrar um spray com cheiro de lavanda. A mãe tampouco havia dormido, mas usou um remédio para induzir o sono. Não funcionou, alucinou que havia uma carreta de formigas no edredom. Levantou lentamente, para não acordar o marido, e foi deitar no sofá, sem manta alguma. Cachorros e gatos imaginários lhe acompanharam. Teve medo de ver o fantasma da filha, ou da sua mãe, ainda viva.

No dia seguinte, as duas, extremamente ansiosas, chegaram juntas, quinze minutos antes do combinado. Sorriram, numa mistura de tristeza, perdão, expectativas. Cada uma pediu um café puro e um pão na chapa. O tipo de pedido que indica que se trata de algo sério, não é um encontro feliz, daqueles em que se pede um croissant com creme de avelã ou um bolo recheado. Ao mesmo tempo, não é um pedido para cinco minutos de conversa, então carboidrato para forrar o estômago e café porque sempre café.

Camile decidiu ir por se sentir pronta para ouvir as piores coisas, aquelas que superariam em muito seus pesadelos mais profundos. Esperava ouvir um “sempre te odiei” ou ainda “deveria ter sido você e não ela”, mas nada disso veio, porque não era uma novela das nove. Eram pessoas reais, com algum filtro social e muitas dores. Todas dores nível dez.

A mãe não sabia por onde começar, então iniciou pelo papinho furado de “como está sua semana?”, “e o trabalho?”, “você tem gatos né? mais de um?”. Camile era direta, e sempre odiou papo furado, conversinha de elevador para ela era tortura. Sempre foi do tipo: vamos falar sobre nossos últimos desejos antes de morrer? Você prefere ser enterrado ou cremado? O tipo de assunto que sempre afastou amizades e parcerias românticas, todas julgando forçado demais, deprimente demais, ansiogênico demais.

— Mãe, vamos direto ao ponto. Sei que não me chamou aqui para falar dos meus gatos ou do que faço da vida. Despeje de uma vez toda a raiva que tem de mim, vamos puxar esse curativo e permitir que a casquinha se forme. Deixemos doer para curar.

A mãe arregalara os olhos, não esperava uma atitude tão determinada da filha, que sempre achou sem sal, mediana em tudo, inclusive na ordem de nascimento:

— Eu sempre te amei Camile. Diferente do que você sempre disse abertamente, não era a Celine minha favorita, ela apenas precisava mais de mim. E aí te pergunto: que mãe não gostaria de ver os filhos precisarem dela? Já reparou como eu amava cuidar dela, ajudá-la? Meus outros dois filhos estavam crescendo, ganhando o mundo, e a única que ainda me perguntava o que fazer, ou qual o melhor caminho, era ela. Uma criança Camile. E eu falhei como mãe. Depois daquilo, não pude mais ser mãe, é como se a punição fosse viver na eterna tristeza e solidão. Sei que vai dizer que eu poderia e deveria ter procurado ajuda, e realmente tentei. Entrei em grupos de pais enlutados, nunca disse a vocês, mas fui a vários encontros. Só que doía demais, e eu me sentia patética. Minha filha morreu tomando alvejante. É ridículo. Os outros pais tiveram filhos que morreram para o câncer, acidentes de carro, uma brincadeira na escola que deu errado. O grito da minha negligência aparecia em todos os grupos, então parei de ir. Achei no álcool a saída, a anestesia que eu precisava para sobreviver a mais um dia, e depois a mais outro.

Camile ouvia, se esforçando para não chorar. Feliz por ouvir a mãe, pela primeira vez em pelo menos dez anos, mas também triste por tudo que ela estava vomitando naquela mesa pequena, com azulejos portugueses. Apenas olhava com atenção e ouvia:

— O seu irmão sempre pareceu mais distante, talvez para se proteger, e vi que ele seguiu a vida. Formou-se facilmente, casou-se, formou a própria família. Você sempre me preocupou, mesmo quando tínhamos Céline. Você sempre tentou dizer: “oi, eu estou aqui”. Por algum motivo, sempre se sentiu a mais excluída, a esquecida. Tinha medo de que eu não te buscasse na escola, e que não gostasse dos seus desenhos. Depois cresceu um pouco e teve medo de eu achar seu cabelo feio, ou seu estilo estúpido. Sempre tentou me agradar, e eu não sabia como fazê-la acreditar que já era suficiente. E que já era amada. Não queria que fosse perfeita, ou diferente do que é, ou mais parecida com os seus irmãos. Sempre amei cada um de vocês de um jeito único e especial. Não era mais ou menos, era apenas diferente, porque vocês eram diferentes. Quando ela se foi, uma parte de mim se foi também, e eu nunca soube como recuperar.

— Por que nunca me disse tudo isso? Eu teria entendido.

— Teria mesmo?

Camile ficou reflexiva. Talvez uns anos antes não teria aceitado esse discurso, diria que a mãe tinha favoritismos, e seguiria vestindo o único personagem que já lhe coubera. Naquele momento, tinha reinterpretado tantas vivências, que conseguia sustentar a dor da mãe:

— Tem razão, eu teria te culpado, aumentado seu sentimento de negligência. Se você não foi a mãe que desejava ou esperava, eu tampouco fui a parceira que gostaria, a filha que imaginava ser.

— Nós nunca somos os ideais que criamos. Somos muito melhores e muito piores. A autocobrança é que vai ao teto e volta.

— Queria que tivéssemos feito isso antes.

— Eu também, mas não éramos as pessoas que somos hoje. Eu entrei na terapia, e foi por ver quem você se tornou. Entendi que nunca foi loucura, sempre foi luto. Tenho ido às sessões individuais, e me identifiquei com a profissional. Estou entendendo dez anos de dor. Minha psicóloga inclusive me disse que mereço ser feliz. Isso me assustou, e ressoou em mim por muitos dias. Depois do luto, parece que a alegria causa estranhamento, como se fosse uma traição à figura da pessoa amada, que se foi. Como se seguir a vida fosse me fazer esquecê-la. Começo a entender que jamais esquecerei da minha — nossa — pequena.

Camile sorriu.

— Mãe, quero que saiba que estou aqui. Eu não sou a Celine, e nunca serei. Sou a Camile. Não sou bem sucedida como meu irmão, mas tenho um trabalho que me permite pagar as contas. Não quero formar uma família tradicional. Gosto mais de gatos do que de gente. Sou naturalmente melancólica. Tenho dias horríveis, de muita dor. Sinto saudade da Celine todos os dias. Ainda preciso de colo de mãe. Se estiver disposta a entrar em minha vida, estarei disposta a te receber de braços abertos. Vamos seguir. Não é sobre recomeçar, mas sobre seguir daqui para frente. Nos permitindo falar da dor que a falta dela causa, mas também tirando fotos novas, rindo até doer a barriga, planejando uma viagem. Vamos celebrar o dia dela lembrando e chorando, como deve ser. Só não façamos isso sozinhas.

— Minha menina.

— Você sempre foi inspiração e espelho para mim mãe, e eu perdi minha luz. Por favor. Minha alma gêmea.

Ali naquele café, num dia de semana, as duas colaram pedaços importantes de suas almas, vivências e histórias. Começaram a construir uma história que teve a longa pausa de dez anos. O pai se aproximou da filha, ainda preferindo o filho mais velho, mas passando a respeitar Camile. Nunca foi o amigo que a mãe era, mas era uma figura neutra.

A mãe seguiu em terapia, mudou muito. Mudou-se de casa, de amizades, de gostos, preferências. Camile começou a namorar, e passou a dividir um pedaço da sua alma já gêmea, com a noiva.

Perdi o contato com Camile quando ela se casou e parou a terapia, dizendo que precisava de uma pausa. Ainda sinto falta dela às quartas-feiras, quinze horas, mas entendo que ela precisava andar os próprios passos, experimentando tudo aquilo que aprendera.

Ela me escreveu dizendo da gravidez, algo inesperado, pois sempre dissera que não queria ser mãe. Disse que a vida aconteceu e que agora seria mãe de uma garota, e que o nome dela não poderia ser outro: Celine, para honrar a memória da sua amada irmã caçula.

Hoje em dia diz que tem dois irmãos, mas que a mais nova se foi muito cedo. Com orgulho se apresenta como a filha do meio, porque existe espaço para o amor ser esticado, puxado, retorcido. O amor é feito elástico, ele vai, vem, se vira, se monta e se mostra.

A mãe decidiu gravar vídeos sobre luto, viralizou e foi convidada a palestrar em universidades e cursos sobre vida e morte. Ela, que nunca achou que poderia entender de coisa alguma, entendeu do que é: a vida no cotidiano.

Elas, mortas em vida, renasceram. De vez em quando, ainda morrem por um tempo, dias, semanas, entenderam que são feitas de ciclos, de sentimentos que não vão embora para sempre, mas que também não fazem morada eterna. Agora sabem como renascer, o que era impensável quando a dor imperava em seus corações.

Celine segue sendo amada. E se estiver vendo, de algum lugar, provavelmente sorri com orgulho. Ela, que sempre foi a colinha da família, não perdeu sua missão, e continua fazendo mudanças.

Começo a me organizar para mudar, de país, de profissão, de vida. Quando os papéis do divórcio foram assinados, senti que precisava mudar de vida, mas não estava pronta. Precisei passar algumas viradas de ano para tomar a coragem necessária, que é essa que segura as mãos do medo e fala: “vamos!”, sem aceitar não como resposta. Me despeço da clínica com orgulho das vidas que pude conhecer, e caminhos que pude ajudar a guiar, segurando a lanterna junto com meus tantos pacientes. Me entrego agora à vida louca que sempre admirei. Em um mês me mudo para a praia, com meu cachorro e a filha que adotei. Somos nós, uma família.

Camile e sua mãe. Família. Camile e a noiva, família. A família fragmentada sem Celine, família.

Escrevo agora pequenas cartas para todos os meus pacientes, cartas digitais que receberão em suas caixas de entrada. Agradeço, desejo o mundo bom que eles merecem. Que nós merecemos.

A vida pode ser boa, mesmo quando a gente morre momentaneamente. As vezes precisamos voltar ao fundo do poço, aquele já conhecido, agora com luzes e mantas quentes, para em seguida sair, pois o manual já foi construído. E amanhã ele falhará, e a vida nos exigirá novamente um recomeço.

A maior montanha russa que já fui: a vida. Essa que é uma criança alegra, que gosta de assustar atrás da porta, de rir do batom nos dentes, de olhar a vida como algodão doce e balas.

Espero que valha a pena. E, se não estiver valendo, que você encontre a escuta necessária para reconstruir o caminho.

Quarto e último texto da série Morte em vida, que abordará temas concernetes à existência, depressão, luto e dores associadas.

Para você que leu as quatro partes dessa história, agradeço pelo tempo que entregou às minhas palavras. Agradeço a minha mãe, que é a minha alma gêmea, e à Zara e Luna, que me ensinam sobre amor e esperança, diariamente.

Obrigada.

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