Senhorinha do ônibus

Maithê Prampero
4 min readJan 31, 2024

--

Ela é do tipo elegante. Calças de linho, uma camisa levemente desproporcional nos ombros, um colar de pérolas. Cabelos brilhantes, uma mistura de lilás e cinza. Provavelmente é dona de um nome que pode ser abreviado, ou ainda que é composto.

Photo by Danie Franco on Unsplash

Na faixa dos setenta, ela ainda utiliza o transporte público. Provavelmente por necessidade. Segurando um envelope grande, de tomografia, ressonância, ou algum exame específico, sei que terá horário com o médico. O médico irá lhe prescrever mais remédios, e talvez dessa vez não escape dos opioides e opiáceos. Dores crônicas.

A fibromialgia apareceu por volta dos quarenta anos, depois que o marido decidiu constituir nova família. Ela acredita piamente que foi o estresse que lhe gerou uma dor difusa, forte, e que aparece do nada. Como a traição, como as coisas que são guardadas. As mágoas.

Ele se separou da segunda esposa, hoje mora sozinho, tem um estilo de vida esquisito. Dez e meia, no máximo, já tomou suas doses de cachaça, em um copo pequeno que é lavado só com água. Pinga destrói qualquer bactéria. O dono do bar que falou.

Os filhos do primeiro casamento deixaram de falar com ele lá na época em que ele foi descoberto. O plano era manter as duas famílias, mas é claro que daria errado, sempre dá. A filha mais velha é a mais destroçada emocionalmente, talvez por ter sido a que mais aproveitou o pai. Ele foi presente em sua vida. Era quem levava no pediatra e quem comparecia às reuniões de escola. Foi um pai.

Para os outros dois, ele foi o pai típico, meio ausente, mas provedor. O pai de uma parcela da sociedade. Pai de agosto, de música do Fábio Júnior, pai herói, de presente em E.V.A. Talvez por isso tenham sofrido menos, já estavam acostumados. Tiveram menos tempo de pai, menos pai.

A senhora deu conta, porque não poderia se dar o privilégio de escolher uma nova família, como uma criança que escolhe a roupa da barbie. Queria espernear e esperar uma solução, dada por terceiros, mas a própria vida cobra. Ou a gente segura a própria vida e as consequências, ou ela nos enterra. Sem direito a coração parado e cérebro desligado. Ela nos passa a perna, nos joga na cova e deixa que morramos já lá embaixo.

Ela fez os filhos estudarem, como princípio máximo de vida. Tem que estudar. Pode casar, ter filho, viajar o mundo, trabalhar de qualquer coisa, mas só depois de cumprir o ginásio, hoje Ensino Médio. Tentou dar aos filhos as oportunidades que nunca teve, nem para poder recusar.

Os filhos terminaram os estudos. Formou uma dentista, um engenheiro e um jornalista. Teve netos, cuidou dos primeiros, mas no terceiro já não tinha pique para criança, as criaturas vêm com uma bateria que adulto algum consegue encaixar.

Se você perguntar, ela vai dizer que teve uma boa vida, e que ama receber a família em casa aos domingos. O que ninguém vê é que sente raiva das dores crônicas, que entortam suas articulações, e que chora de vez em quando, porque a vida dói e doeu. A vida sempre dói, mesmo para os privilegiados. Só que dói mais para quem tem menos escolhas.

Ninguém vê que ela queria ter tirado carta, nem que fosse para dirigir um carro já sem IPVA, mas não pode, porque na sua época, mulher era para casar e ter filho. O marido dirigia, mas não deixou que ela se tornasse habilitada. Tinha medo de ela abrisse os olhos e fosse embora antes dele. Tanto medo que garantiu o oposto da solidão com uma nova família, que também abandonou.

Nunca percebeu que queria se abandonar, e à vida de merda que levou. Queria não precisar dirigir, porque ficava ansioso toda vez. Coisa chata essa de carro morrer. E agora coisas materiais também morrem?

Photo by Mangopear creative on Unsplash

O ônibus pega a pista, porque é daqueles que corta a cida pela rodovia. Acho errado, transporte público não dá conta de via rápida dessa forma. Sempre aumento a música nessa hora, e tento fechar os olhos, por trás dos óculos escuros.

A corda de sinal é puxada. A senhorinha levanta, segurando seu exame e uma bolsa que deve ter uma sombrinha, documentos, e o dinheiro da volta do ônibus. Certamente também carrega bala de café.

Ela desce, agradecendo ao motorista. Por um momento imagino o porquê do agradecimento, já que o motorista está trabalhando, e ela, pagando a passagem. Depois entendo que era assim. As pessoas costumavam agradecer verdadeiramente. Costumavam reconhecer que do outro lado há um outro ser humano. Trabalhando, doendo, sangrando.

Novamente, aprendi no transporte. Fecho meu bloquinho de notas do celular, puxo a corda. Já pronta para pular do ônibus, viro e agradeço: tenha um ótimo dia seu motorista, muito obrigada!

As pessoas doem. A vida é como uma doença crônica. Dura uma vida inteira, e termina quando o fio que nos desliga é finalmente puxado. Quando a corda que dá nosso sinal é arrancada da inércia.

Obrigada por ler até aqui. Clique nas palminhas e apoie este texto. Siga meu perfil e apoie a literatura nacional feita por mulheres.

--

--